Transcrevemos do sitio Conversa Afiada o primoroso e corajoso texto do brilhante Professor da USP, Doutor Conrado Hübner Mendes
"É urgente
desarmar Gilmar Mendes"
O
Supremo converteu-se em gabinete regulatório da crise política brasileira. Não
há impasse político no país que lá não chegue, quer na esfera criminal, quer na
eleitoral, parlamentar ou constitucional. Com maior ou menor competência,
clareza e inventividade, o tribunal, quando não se omite, tem definido as
regras do jogo. Aos atores políticos implicados cabe obedecê-las. A obediência,
contudo, não é um dado que se possa presumir, mas uma meta a se conquistar.
Essa conquista é rodeada de incerteza. Em casos com tamanha voltagem política,
nos quais o tribunal busca disciplinar conflitos e sancionar atores com
vultosos estoques de poder, o espectro da desobediência, explícita ou velada,
torna-se palpável. Há incentivos para resistir ao STF. Cabe ao tribunal antecipá-los,
neutralizá-los, minimizá-los.
Como pode um
tribunal minimizar esses incentivos e conquistar autoridade? Nem o direito
constitucional comparado, nem a história judicial brasileira oferecem uma
receita para essa pergunta. Sabe-se que a fórmula, seja qual for, não pode
prescindir, por um lado, de argumentação transparente que costure uma
jurisprudência constitucional digna desse nome; por outro, de uma sensibilidade
de conjuntura, uma gestão aguçada de seu capital político. Duas tarefas que o STF não desempenha com destreza:
a ingovernabilidade de suas práticas solistas, já
diagnosticada por tantas pesquisas empíricas na última década, é a síntese de um tribunal ancorado na individualidade de seus ministros.
Comportamentos propriamente institucionais e decisões que conjuguem a primeira
pessoa do plural não são visíveis ali.
Uma
corte poderosa não é aquela que recebeu amplos poderes da constituição, mas
aquela que se faz obedecer. Sua imagem precisa estar acima de qualquer
suspeita. A ciência política que estuda cortes constitucionais pelo mundo sabe
que os atributos da legitimidade e da independência não são gratuitos nem
estáveis. Flutuam conforme as circunstâncias, o comportamento judicial e as
reações às decisões tomadas. Por isso mesmo, a legitimidade depende de contínua
administração e do bom desempenho do tribunal. Entre os adversários da
credibilidade institucional do STF está, curiosamente, um dos seus próprios
ministros: sobreviver a Gilmar Mendes é um desafio do cotidiano do STF. Requer
do tribunal uma estratégia de redução de danos. Mas o STF permanece rendido e
incapaz de controlar as contínuas quebras do decoro judicial.
A política de
Gilmar Mendes
As
relações de Gilmar Mendes com a política não são novas, nem causam mais
espanto. O ministro transita com desenvoltura, em ambientes públicos e
privados, com correligionários partidários. Gilmar Mendes, juiz, tem
correligionários. Políticos que orbitam no seu círculo lhe pedem favores no
tribunal, lhe consultam sobre problemas jurídicos pessoais ou sobre os rumos
constitucionais do país, em encontros privados fora do tribunal ou telefonemas.
Negociar, prometer apoio, organizar jantares em casa, freqüentar jantares dos
outros. O ministro é presença constante nos "círculos de comensais de
banquetes palacianos", nas palavras de Rodrigo Janot. Corteja o poder
político, e o poder político o corteja. Há reciprocidade.
A história é extensa, mas não custa recapitular alguns exemplos de promiscuidade. Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, Blairo Maggi, Eduardo Cunha são algumas das autoridades públicas que lhe freqüentam, antes e depois que tiveram suas reputações gravemente atingidas por denúncias de corrupção.
A história é extensa, mas não custa recapitular alguns exemplos de promiscuidade. Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, Blairo Maggi, Eduardo Cunha são algumas das autoridades públicas que lhe freqüentam, antes e depois que tiveram suas reputações gravemente atingidas por denúncias de corrupção.
O
episódio mais recente relaciona-se a Aécio Neves, até então presidente do PSDB
e segundo colocado nas eleições presidenciais de 2014. Aécio telefonou para
Gilmar Mendes, um dia depois de este ter suspendido o depoimento do senador à
Polícia Federal. Pediu que o ministro telefonasse para o senador Flexa
Ribeiro e que este votasse o projeto de lei contra o abuso de autoridade.
Sem maiores solenidades ou esforço argumentativo, a assessoria do ministro
publicou nota: "o ministro Gilmar Mendes sempre defendeu publicamente o
projeto de lei de abuso de autoridade (…), não havendo, no áudio revelado, nada
de diferente de sua atuação pública. Os encontros e conversas mantidas pelo
ministro Gilmar Mendes são públicos e institucionais."
Há
um mês, Gilmar Mendes também conversou com Joesley Batista, da JBS. A conversa
ocorreu no Instituto de Direito Público, escola de direito fundada pelo
ministro. Como sua família vende gado para a JBS no Mato Grosso, foi alegada a
suspeição num caso em que o Supremo julgava a cobrança do Funrural, fundo
composto por contribuições de produtores rurais à previdência. O ministro
defendeu-se: "Votei contra os meus próprios interesses econômicos,
pois minha família terá de pagar a contribuição atrasada".
Admite, portanto, que teria interesses na causa, mas não se enxerga como
suspeito.
A
antiga relação de amizade que Gilmar Mendes tem com Sérgio Bermudes, já
descrita, em 2010, por longa reportagem da Revista Piauí[1], também rendeu
notícias nas últimas semanas. A concessão de habeas corpus para Eike Batista,
cliente de Sérgio Bermudes, sócio de sua esposa, rendeu pedido de impedimento
apresentado pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, com base em
artigo do Código de Processo Civil e do Código Penal. Em outra nota pública de
sua assessoria, o ministro defende-se na mesma lógica: "Cabe lembrar que
no início de abril o ministro Gilmar negou pedido de soltura do empresário Eike
Batista (HC 141.478) e na oportunidade não houve questionamento sobre sua
atuação no caso"[2].
A normalização de
Gilmar Mendes
Não
nos escandalizamos mais com os escândalos de Gilmar Mendes. O juiz integra a
cozinha partidária como um par. A sociedade brasileira se deixou anestesiar e
passou a vê-lo como patologia menor de um sistema político que não consegue
separar o público do privado. Os fatos abaixo não geraram mais do que algumas
notas na imprensa. São uma pequena amostra dessa anestesia:
(i)
Gilmar
Mendes telefona, em fevereiro de 2015, ao governador do Mato Grosso, Silval
Barbosa, depois de a polícia ter executado mandado de busca e
apreensão na casa do governador. Manda um “abraço de solidariedade" e
promete conversar com Toffoli;
(ii)
Encontra-se, fora de agenda pública, em março de 2015, com o
ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, quando este já era
investigado pela Operação Lava-Jato;
(iv)
É organizador de Seminário Luso-Brasileiro de Direito Constitucional,
em março de 2016, realizado em Portugal pelo Instituto de Direito Público, que contou com a
presença de Aécio Neves e outros políticos (no calor da crise política, Michel
Temer, confirmado, cancelou sua participação em cima da hora). O evento ocorreu
numa hora de alta tensão da Lava Jato e seus reflexos no processo de
impeachment, logo depois que Gilmar Mendes, em liminar monocrática, invalidou
nomeação de Lula para o ministério de Dilma. O mesmo IDP, meses antes (12/2015), inaugurava escola de direito em São Paulo com
presença de muitos políticos, como Michel Temer, recebidos no palco por Gilmar
Mendes. Michel Temer, mais uma vez, estará presente num seminário do IDP nos
dias 20 e 21 de junho, evento patrocinado pela Caixa. Poucos dias antes, o TSE,
sob a presidência de Gilmar Mendes, reinicia o julgamento que põe em risco o
mandato do presidente.
(v)
Almoça, em março de 2016, com José Serra e Armínio Fraga. Horas mais tarde,
julga no STF o rito do impeachment, com declarações inflamadas contra a
corrupção de um partido político que não lhe agrada, que pouco tinham a ver com
o mérito daquele processo. Questionado sobre o episódio, respondeu: ‘Não estou proibido
de conversar com Serra, nem com Aécio".
(vi)
Alguns jantares: a) em sua própria casa, com pecuaristas, o Ministro
da Agricultura Blairo Maggi, e o vice-presidente Michel Temer, que manifestava
ali a vontade de que o impeachment de Dilma fosse antecipado (2/8/2016); b) com o presidente Michel Temer, no Palácio do Jaburu,
para uma “conversa da rotina" (22/1/2017); c) em sua própria casa, numa
homenagem a José Serra, investigado na Lava Jato, com
presença de Michel Temer (16/3/2017);
(vi) Michel Temer, alvo de processo que pode levar à sua cassação no TSE, presidido por Gilmar Mendes, indica primo deste para diretoria de agência reguladora (14/3/2017).
(vi) Michel Temer, alvo de processo que pode levar à sua cassação no TSE, presidido por Gilmar Mendes, indica primo deste para diretoria de agência reguladora (14/3/2017).
Sempre
que questionado, Gilmar Mendes afirma que sua isenção é inabalável, como se
fosse esse o problema. Despista. Pinça alguns exemplos de decisões que tomou,
supostamente, contra os próprios interesses ou contra os próprios amigos. Esses
exemplos seriam as provas incontestáveis de sua integridade. Tergiversa. E se,
num determinado caso, a solução juridicamente correta fosse aquela que
favorecesse o interesse de seu aliado? Da mesma maneira que uma decisão que
contrarie interesses de seu amigo advogado (e de sua própria esposa, sócia do
advogado) não prova sua honestidade, uma decisão favorável aos mesmos
interesses tampouco provaria sua desonestidade.
A mira da resposta está errada. Seu equívoco é intencional e confunde imparcialidade objetiva e subjetiva: sabe que os mecanismos legais de suspeição e impedimento não servem para garantir o juiz honesto, mas para assegurar a imagem de imparcialidade da justiça e afastar qualquer desconfiança quanto à legitimidade da decisão. É preciso parecer honesto e imparcial, como a mulher de César. Trata-se de regulação elementar de conflitos de interesse a partir de parâmetros republicanos. Gilmar Mendes não respeita parâmetros republicanos.
A mira da resposta está errada. Seu equívoco é intencional e confunde imparcialidade objetiva e subjetiva: sabe que os mecanismos legais de suspeição e impedimento não servem para garantir o juiz honesto, mas para assegurar a imagem de imparcialidade da justiça e afastar qualquer desconfiança quanto à legitimidade da decisão. É preciso parecer honesto e imparcial, como a mulher de César. Trata-se de regulação elementar de conflitos de interesse a partir de parâmetros republicanos. Gilmar Mendes não respeita parâmetros republicanos.
Suas
respostas insistem nesta falácia. No último não-escândalo, Aécio Neves lhe
telefona para pedir um favor político. Há detalhes que não são meros detalhes.
Um ministro de corte suprema trava conversa privada com senador da república para
tratar de um projeto de lei em tramitação. Um senador investigado por corrupção
solicita ao ministro que, na sua condição de ministro, ligue para outro senador
para pedir apoio. Que o ministro faça, em outras palavras, articulação
parlamentar. O pedido é bem recebido. Quando, em sua defesa, diz que seus
posicionamentos sobre a respectiva lei já eram públicos e conhecidos, quer
obscurecer a distinção primária entre o público e o privado, entre a pessoa
privada e a pública, entre o juiz e o parlamentar.
A normalização de Gilmar Mendes não é só de Gilmar Mendes. Já não conseguimos ver diferença relevante entre os parâmetros de conduta de um juiz, de um político e de um cidadão comum. Paga-se caro por isso. O ministro fez de si um expoente daquilo que, retoricamente, mais abomina: uma corte bolivariana. Ele mesmo, por um irônico lapso, pinta o seu auto-retrato: “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz bem para a democracia".
A normalização de Gilmar Mendes não é só de Gilmar Mendes. Já não conseguimos ver diferença relevante entre os parâmetros de conduta de um juiz, de um político e de um cidadão comum. Paga-se caro por isso. O ministro fez de si um expoente daquilo que, retoricamente, mais abomina: uma corte bolivariana. Ele mesmo, por um irônico lapso, pinta o seu auto-retrato: “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz bem para a democracia".
A pedagogia de
Gilmar Mendes
Há
quem eduque pelo exemplo. Gilmar Mendes educa pelo contraexemplo. Oferece uma
ética negativa: uma longa lista sobre o que não fazer. Filósofos que navegam
pela ética aplicada e formulam parâmetros para lidar com dilemas morais de
nossa vida cotidiana são muitas vezes agnósticos e minimalistas sobre a decisão
correta a tomar. Diante da complexidade do contexto e das nuances de cada caso,
sentem-se mais seguros em apontar o que não fazer. Essa é a contribuição
pedagógica de Gilmar Mendes: sua conduta é uma cartilha da anti-ética.
Nem
sempre é fácil saber qual a conduta judicial correta em situações dilemáticas
dentro e fora da corte, dentro e fora dos autos, dentro e fora da interpretação
constitucional. Há imensa riqueza no comportamento de Gilmar Mendes. Seus
contra-ensinamentos são valiosos.
Os atos listados acima não são deslizes isolados ou eventuais. Trata-se de sistemática e periódica desconsideração de princípios de prudência e respeito à liturgia do cargo, indispensáveis à construção da imparcialidade e respeitabilidade da atividade judicial. Juízes não estão proibidos de ter amigos, de ter vida social intensa, de viverem uma vida normal. No entanto, a ética da atividade judicial pede vigilância a certos comportamentos, um senso de responsabilidade pelo ethos de sua instituição. Nada excessivamente oneroso.
Os atos listados acima não são deslizes isolados ou eventuais. Trata-se de sistemática e periódica desconsideração de princípios de prudência e respeito à liturgia do cargo, indispensáveis à construção da imparcialidade e respeitabilidade da atividade judicial. Juízes não estão proibidos de ter amigos, de ter vida social intensa, de viverem uma vida normal. No entanto, a ética da atividade judicial pede vigilância a certos comportamentos, um senso de responsabilidade pelo ethos de sua instituição. Nada excessivamente oneroso.
Gilmar
Mendes não é “polêmico", nem “controverso", nem “corajoso".
Eufemismos jornalísticos apenas obscurecem o problema. O direito não é indiferente a antiética de Gilmar Mendes:
seu comportamento é ilegal.
A responsabilidade
por Gilmar Mendes
Apesar
de Gilmar Mendes, o Supremo ainda sobrevive. Sua sobrevivência como ator
político relevante, contudo, não está garantida. O grau de relevância do
tribunal já está sob teste. Ou, num jargão da ciência política, “sob
estresse". O ministro é um dos principais artífices da ingovernabilidade
do STF: joga contra a imagem da instituição, contra o plenário e contra seus colegas juízes. Violenta a imparcialidade, moeda volátil
da qual uma corte com tamanha missão tanto depende.
O
colegiado é corresponsável pelos danos causados por Gilmar Mendes. O ministro
não é só um problema “para" o Supremo, mas um problema “do" Supremo,
que permanece omisso. Entrega ao ministro um cheque em branco. Não bastasse ter
adversários demasiado poderosos para enfrentar, o Supremo ainda faz vista
grossa para a conduta destrutiva de um de seus membros. Um inimigo íntimo como
esse exige coragem e articulação para enfrentá-lo. O plenário deixa-se apequenar na cumplicidade, e deve
prestar contas com a democracia brasileira por isso. O Supremo não
pode se submeter a esse pacto suicida. Sabe disso.
O
que fazer para se proteger de Gilmar Mendes? Um passo modesto, para quebrar a
inércia normalizadora da sua conduta, seria reconhecer a suspeição do ministro
em tantos casos em que sua persona política não tem como não se confundir com
sua persona judicial. Por mais que o ministro prometa ser isento. Por mais que
seja sincero.
Um
dos maiores desafios de desenho institucional de uma corte suprema é prover
formas de auto-regulação coletiva dos desvios individuais. Num órgão colegiado
desse tipo, a colegialidade é indispensável. Não há instância superior que o
limite. Talvez por insolúvel do ponto de vista procedimental, o desafio não foi
inteiramente equacionado nem pelos Federalistas americanos nem por arquitetos
das cortes constitucionais do séc. XX. A leniência institucional diante do
desvio individual pode ser uma escolha racional quando a instituição permanece
acima de qualquer suspeita. No Supremo, esse não é mais o caso. O espectro da desobediência
ronda a corte faz tempo.
Uma
corte constitucional precisa, em tempos de normalidade, acumular capital
político para proteger a constituição nas situações-limite da política. De sua
habilidade para desarmar dinamites depende a qualidade e longevidade da
democracia. É urgente desarmar Gilmar Mendes.
[1] Em carta à Revista Piauí, reagindo às denúncias feitas pela reportagem sobre a relação sua e de sua mulher com Sérgio Bermudes, Gilmar Mendes respondeu: “Aliás, ela era tão somente gestora organizacional do escritório do dr. Sergio Bermudes, mais um entre tantos advogados que atuam em processos sob a minha relatoria que examino com a mesma isenção."
[2] Pedido de impedimento de Gilmar Mendes por Rodrigo Janot diante do fato de que sua esposa é sócia de Sérgio Bermudes (10/5/2017)
Conrado Hübner Mendes - Professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP. Doutor em direito pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP. Foi HLA Hart Fellow na Universidade de Oxford. É Embaixador Científico da Fundação Alexander von Humboldt no Brasil.
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