Pelo pelo brilhante, preciso e corajoso texto do respeitado Advogado, Dr. José Roberto Batochio transcrevemos abaixo a Carta aos democratas do Brasil, publicada no sitio "Brasil247"
CARTA AOS LIVRES E DEMOCRATAS
Por José Roberto Batochio (Advogado Criminalista, Ex-Presidente Nacional da OAB,
Ex-Deputado Federal).
Constitui truísmo o princípio geral do Direito de que a ninguém
é dado ignorar a lei e que não se exime de culpa quem a desconhece.
Ou seja, o desconhecimento da tipificação do delito não exclui a
ilicitude, não elide a culpa, não descaracteriza o crime nem inocenta o
criminoso. Forjado no Direito Romano, com o brocardo ignorantia legis non
excusat (a ignorância da lei não escusa), manteve-se sólido e isonômico até
nossos dias, valendo para o mais humilde, o mais ignorante, o mais simplório
dos cidadãos. Mostra-se ainda mais imperativo aos operadores do Direito,
sobretudo aos magistrados.
No espetáculo judicial-midiático a que assistimos, tão pasmos
quanto indignados perante a violação sistemática dos básicos postulados do
estado democrático de Direito, em que as decisões parecem press releases
escritos para industriar a fúria de facções, a agitação das turbas, é tarefa
difícil apontar qual seja o protagonismo de uma irregularidade processual, mas
vem ao caso destacar a forma cavilosa e recorrente com que a Lei n.º 9.296, de
24 de julho de 1996, tem sido desrespeitada por agentes da autoridade a quem a
República encarregou do zelo prioritário do ordenamento jurídico.
Ao se dar estrepitosa publicidade ao conteúdo dos autos da 24.ª
fase da mal cognominada Operação "Lava Jato" (que ofende a lei e a
sintaxe), mais uma vez se violentou a Lei. 9.296/1996, editada para
regulamentar e integrar o inciso XII, parte final, do Art. 5.º da Constituição
da República.
O artigo declaratório dos direitos e garantias que, jamais será
ocioso lembrar, veio a ser a carta de alforria da cidadania asfixiada e manietada
pelos "anos de chumbo", inscrevendo no Texto Maior da Cidadania
direitos elementares do povo jamais reconhecidos pelos que se acham síndicos do
poder ou por justiceiros que envergam toga.
O maltratado art. 8° assinala que "a interceptação de
comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados,
apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal,
preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições
respectivas."
Autos apartados? Preservação do sigilo das gravações? Poderia a
Lei ser mais clara e incisiva? In claris cessat interpretatio, é a primeira
regra da interpretação das leis. As gravações e transcrições decorrentes dos
chamados "grampos" apensam-se aos autos do processo penal pelo cadeado
inviolável do segredo de justiça. Arrombá-lo fora das hipóteses legais
constitui crime.
Podem ainda ser citados o § 1.º-A do art. 153 e o art. 325 do
Código Penal, que tipificam como crime a divulgação indevida de material a ser
mantido em sigilo funcional.
O ilícito penal avulta, já na origem, quando os investigadores,
em sua cartilha persecutória segundo a qual a inocência é um defeito e réu
inocente merece pena mínima, utilizam a astúcia de incluir, em listas de
interceptação telefônica, nomes de pessoas que não estão sob investigação, mas
que, por razões ainda não suficientemente esclarecidas, precisam - porque
precisam - ser atingidas. No recente episódio da divulgação de conversas de um
ex-presidente, embora ele grampeado com autorização judicial, foram publicados
até diálogos com a atual presidente da República e com um ministro de Estado
que recebeu chamada feita a partir de uma das linhas sob escuta - e tais
pessoas não constavam da lista de investigados... Cabia destruir imediatamente
o material anódino e quanto ao penalmente relevante encaminhá-lo aos Tribunais
aos quais está afeto o julgamento dessas autoridades, em razão da prerrogativa
do foro.
Não fora bastante, a indevida interceptação estendeu-se aos
advogados com atuação na causa. Não só ao principal defensor direto da parte,
mas a todo seu escritório. Profissionais de vários níveis, em contato com
centenas de clientes, tiveram sua comunicação devassada - o que é crime
definido em lei, com a cominação de pena de reclusão, de dois a quatro anos, e
multa. A "extravagância" processual (sejamos eufêmicos) ainda se deu
ao arrepio do artigo 7.º do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/1994),
que assegura ao advogado "a inviolabilidade de seu escritório ou local de
trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência
escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício
da advocacia".
Salta aos olhos que, em certos foros, aqueles que exercem a
Advocacia são tratados como um estorvo ao inquérito e ao processo, por
invocarem o primado do Direito e defenderem as formalidades prescritas na lei,
o que fazem legitimamente, pois seu papel primordial é fazer valer o direito de
defesa e zelar pelo rito procedimental democrático. Pode haver promotor, podem
haver testemunhas, pode haver juiz, mas se advogado não houver jamais haverá
justiça, pelo menos uma que seja digna de tal conceituação.
Nestes tempos bicudos seguem a ecoar as palavras de Cícero,
"oh tempos! oh costumes!", quando a prisão preventiva torna-se mecanismo
de extração de confissões, réus são constrangidos a se auto-incriminar ou a se
submeter às torturantes condições do nosso animalesco sistema penitenciário, o
mero exercício da autodefesa é visto como "obstrução da investigação"
e ensejador de prisão preventiva, "delação por ouvir dizer" ganha
foros de prova documental, a condução coercitiva precede a intimação para
depor, sobretudo nessa ambiência em que se emulam os estados policiais, urge
preservar a liturgia democrática, o devido processo legal e a ética
procedimental. Vale mais uma vez lembrar Rui Barbosa, na passagem em que nosso
maior jurisconsulto evocou "aquela noite da consciência moral" da
França, quando os "girondinos escreviam à Convenção que as formalidades da
lei embaraçam o tribunal, que a loquacidade dos advogados retarda a justiça,
que depoimentos e debates são inúteis perante um juiz de convicção
formada."
Entre a prova legal e a convicção pessoal, o magistrado só pode
ter a opção da Lei. Como em outros ramos do conhecimento, também no Direito a
conclusão depende de premissas empíricas e a sentença tem de ser filha
consequente da prova legalmente garimpada. A convicção pessoal, vestíbulo do
prejulgamento, pode se formar a partir de doutrinas, inclinações políticas,
ideológicas, e até de deformidades idiossincráticas, mas é apenas vento no
moinho das provas. Sentenças herméticas, recheadas de filosofices, podem
constituir exercícios de retórica, porém, ainda lembrando Marco Túlio Cícero,
só implicam abuso da paciência.
Na mesma medida em que se institui sigilo fechado, arbitrário e ilegal, em determinados processos, negando o necessário e legítimo acesso dos advogados aos adminículos, fazendo-os somente conhecer as acusações pela imprensa, e assim contrariando a Súmula Vinculante n.º 14 do Supremo Tribunal Federal, dá-se publicidade ao que a lei, de fato, manda resguardar em segredo de Justiça.
Coloca-se o atônito Corpo Social diante de uma escolha de Sofia:
ou admite que aqui não se conhece a lei ou reconhece que ela não é respeitada.
Quem não conhece ou não respeita a lei pode impô-la aos seus
semelhantes, punindo-os por sua desobediência?
Lembrando numerosos casos na História de homens que acabaram por provar do
veneno que inocularam nas ruas, como Maximilien de Robespierre, se não por
outras e justificáveis razões, a prudência recomenda que não se desrespeitem os
advogados, pois de um deles se pode precisar, dia desses...
Fonte: http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/222234/Carta-aos-livres-e-democratas.htm
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