Reproduzimos abaixo o preciso e excelente texto do jornalista Fernando Brito postado no stio "Tijolaço"
A “morosidade” da Justiça, o linchamento judicial
de Moro e a lição de Montesquieu
A um juiz, pela importância da função que
exerce, exige-se, antes de tudo, decoro, prudência e discrição.
O Dr. Sérgio Moro
não cansa de – elevado ao estrelato de Juiz Supremo do Brasil – expor ao país a
boa razão de esperarem-se tais coisas de um magistrado.
Ontem, está no Estadão, não
perdeu a chance de usurpar as funções que não são suas e proclamar-se juiz dos
desejos do povo, no mais deslavado populismo judicial.
“A população
quer saber o ‘efeito final’ dos processos criminais, ‘saber se a Justiça
funciona ou não’. Não podemos ter a Operação Lava Jato como um soluço que não
gere frutos para o futuro”.
Não, Dr. Moro, o
papel de Justiça é ser justa, equilibrada, garantidora não apenas do
cumprimento da lei, mas da universalidade dos direitos, não importa a quem.
Não é a de se
substituir ao linchamento popular dizendo: “podem deixar que eu espanco ele”…
“No Brasil, existem casos
criminais em que a prova incriminatória é esmagadora, mastodôntica, com a
responsabilidade demonstrada, e o réu insiste em ir até o final do processo,
apostando na impunidade.”
É direito do réu,
de qualquer réu, esgotar suas possibilidades de defesa.
O que compete ao
Judiciário é fazer com que este processo de garantia do reexame de decisões
– quase todas de um só homem- seja rápido, não o de eliminar esta
garantia.
Garantia,
inclusive, do poder persecutório do Estado, que pode e deve recorrer de
decisões que não considerem “esmagadoras e mastodônticas” as decisões do juiz
ou as penas aplicadas, porque não há proibição, quando não é apenas a defesa
quem recorre, de agravarem-se as penas. Só no caso de recurso exclusivo da
defesa há a vedação do aumento de pena, o tal “reformatio in pejus” de que
falam os advogados.
Mas vai-se adiante
no estilo judicial que não busca apenas ternos em Miami, mas modelos de
Justiça, ao arreppio da Constituição brasileira que diz, em seu o art. 5º,
LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados
em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes”.
Sérgio Moro
verbaliza aquilo que, há dias um colega seu, o juiz Alexandre Morais da Rosa,
adverte da ideia de copiar o sistema americano de transformar a aplicação da
lei ao um mero “negócio entre partes”, o acusador e o acusado, chegando ao
“extremo de termos uma pena sem processo e sem juiz”.
O acusado, assim,
praticamente se transforma num sequestrado, que deve pagar com algo – ou a
delação de terceiros ou a assunção de uma pena “vantajosa” – pelo direito de
ser condenado com “limite” de pena e sem a chance de lutar por sua
eventual inocência.
Não há mais
inocentes, há apenas os que não quiseram confessar e que, por isso, já estão
condenados.
“A negotiation viola desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a
violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional e
tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do
Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa uma
inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser dominada
pelo tribunal, que erroneamente limitase a homologar o resultado do acordo
entre o acusado e o promotor. Não sem razão, afirma-se que o promotor é o juiz
às portas do tribunal. O pacto no processo penal pode se constituir em um
perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão,
capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência,
obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e
insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática,
em que a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal transformar‑se
em uma complexa e burocrática guerra”.
Aliás, a condenação
precede mesmo o julgamento, porque o Dr. Moro provou que é possível – e triste
– que se mantenha alguém preso por meses a fio sem que nada haja contra si,
senão a versão unilateral de um delator que aponta o dedo a alguém para
se safar, no possível, de seus próprios delitos.
Alem do mais, a
banalização da transação penal tem efeitos pra lá de discutíveis
sobre a eficácia do sistema judicial em si, quando não se considera o interesse
– ou, quem sabe, o desejo – de envolver e culpabilizar terceiros. Qualquer
pessoa do povo sabe que, nos crimes de menor poder ofensivo, o “pagamento de
cestas básicas” tornou-se uma especie de garantia de impunidade de fato, como
pode se tornar o pagamento de multas e a “deduração” de outrem.
O discurso do Dr.
Sergio Moro não é o da elevação do papel do Juiz, mas o seu rebaixamento à
condição de “justiceiro”, como se a punição e não a justiça fosse o cerne de
sua ação.
Há, contudo, um
aspecto de imensa perversidade quando se nega a presunção da inocência até a
apreciação de recursos e a condenação transitada em julgado, pretendendo a
execução prévia de pena e recusando o que disse Montesquieu há mais de 250
anos, em seuEspírito das Leis: quando a (presunção da) inocência dos cidadãos não é assegurada, a
liberdade também não o é” .
Porque
a lei é feita para todos os homens e mulheres, não para os
criminosos e, portanto, deve cuidar antes de proteger o inocente que de
castigar o transgressor.
É, dizia dizia o
velho pensador, em que se funda boa parte da ideia moderna de estado, uma regra
que vale tanto para o indivíduo quanto para a sociedade:
“Quando uma república conseguiu
destruir aqueles que queriam derrubá-la, deve-se apressar em pôr fim às
vinganças, às penas e até mesmo às recompensas. Não se podem realizar grandes
punições, e por conseguinte, grandes mudanças, sem colocar entre as mãos de
alguns cidadãos um grande poder. Logo, é melhor, neste caso, muito perdoar do
que muito punir; pouco exilar do que muito exilar; deixar os bens do que
multiplicar os confiscos. Sob pretexto da vingança da república, seria
estabelecida a tirania dos vingadores. Não se trata de destruir aquele que
domina, e sim a dominação. Deve-se voltar o mais rápido possível para o
andamento normal do governo, onde as leis protegem tudo e não se armam contra ninguém.”
Nem Stálin nem
Hitler pensavam assim.